"Partes da sociedade estão doentes (...) Trata-se de criminalidade pura e simples e não há qualquer desculpa para isso. Não permitiremos que a cultura do medo exista em nossas ruas. Faremos o que for preciso para restaurar a lei e a ordem e reconstruir nossa comunidade".
David Cameron, premiê britânico – recentemente envolvido no escândalo de escutas ilegais de Murdoch – abandonou suas agradáveis férias italianas para dar a deplorável declaração acima. Neste momento, as prisões londrinas estão abarrotadas de milhares de jovens, a tal grau que aqueles com passagem pela polícia estão sendo transferidos para cadeias no interior do país. Em apenas uma semana, uma onda de revolta e violência se ergueu e inundou as principais cidades inglesas, destruindo carros, casas, lojas, erguendo barricadas e transformando as ruas em campos de batalhas.
A faísca foi acesa pelos tiros à queima-roupa contra o jovem Mark Duggan no dia 4/08, perpetrados pela polícia londrina. Do bairro suburbano Tottenham, onde morava Duggan, protestos tomaram Londres e importantes cidades como Bristol, Birmingham, Leeds, Liverpool, Nottingham e Manchester. Como afirmou o próprio Cameron, "simplesmente não havia polícia suficiente e as táticas que usavam não funcionavam".
O país ainda está paralisado, instável, atravessado pelas contradições e se perguntando como tudo isso foi possível em apenas uma semana. De seu ponto de vista, Cameron nos explica: "Trata-se de uma cabal falta de responsabilidade de determinados setores da sociedade. São pessoas que tendem a pensar que o mundo lhes deve algo e que os seus direitos suplantam as suas responsabilidades".
A verdade por trás da hipócrita afirmação do premiê é que o mundo realmente deve algo aos jovens londrinos. Numa sociedade fundada sobre a exploração, o único direito sério que o jovem trabalhador tem é o direito ao trabalho. Esse direito, no entanto, lhe é roubado a cada dia. Não à toa a revolta começou em Tottenham: é o bairro com o maior número de desempregados em Londres. Números divulgados em julho revelam que ali há mais de 6 mil trabalhadores desocupados e apenas 121 ofertas de emprego.
No país todo e no resto do continente em crise a situação não é melhor. A taxa oficial de desemprego está em 8,8% e é muito maior para a juventude. Somente no último ano a procura por emprego aumentou em 10%. O desemprego entre os jovens na União Europeia atinge níveis insustentáveis, tendo crescido cerca de 25% somente nos últimos dois anos e meio. Em média, em todo o continente atinge 20,5% entre os de 15 e 24 anos. Trata-se da maior percentagem desde que as estatísticas começaram a ser registradas. Na Espanha, os números dobraram desde 2008, atingindo 46% dos jovens. Em segundo lugar está a Grécia, com 40%, depois a Itália (28%), Portugal e Irlanda (ambos com 27%) e França (23%). É essa negatividade aprisionada nas grandes cidades, e pronta para explodir, que se manifesta nos protestos da juventude de toda a Europa.
Em vários depoimentos que circularam na internet, além do “governo” e dos “ricos”, os jovens ingleses atacam ainda especialmente a polícia, que estaria impondo um regime arbitrário de perseguição, com abordagens e revistas sem qualquer justificativa.
Sabe-se ainda que grande parte dos desempregados suburbanos são imigrantes. No caso da Inglaterra, são sobretudo indianos e sul-africanos – ou seja, trabalhadores que, em busca de melhores condições de sobrevivência, saíram de países brutalmente colonizados e violentados pela própria Inglaterra.
Assim, a violência hoje empregada pelos jovens ingleses contra a polícia e contra símbolos da sociedade capitalista não é apenas uma resposta à violência cotidiana a que eles estão submetidos, não é apenas uma resposta à violência do desemprego, dos cortes sociais e da repressão policial constante, mas é também um retorno, sob nova forma, da violência histórica originária do próprio capital inglês e mundial. A violência, agora, se volta contra a burguesia.
A bestialidade da violência imperialista empregada pela Inglaterra – o massacre de povos inteiros, como os africanos e indianos, para construir grandes fortunas e dar à luz o modo de produção capitalista, o terrível processo descrito por Marx no capítulo XXIV d'O Capital – nunca desapareceu. Apenas soterrada, a violência precipita em diversos momentos, paralisando a sociedade. O caso não é exclusivo da Inglaterra. Vimos o mesmo ocorrer nas periferias da França em 2005 e 2007. Tal violência, no entanto, é muito inferior àquela imposta durante séculos à classe trabalhadora pelo capital.
A violência originária foi e é empregada não apenas contra os jovens imigrantes, mas também contra todos os trabalhadores europeus. Devido às péssimas e instáveis condições de vida, os jovens imigrantes são muitas vezes os primeiros a liberar tal violência e em tal patamar.
Vivemos em uma sociedade sob o signo da morte, que desperdiça milhões de potencialidades e alista toda uma geração para engrossar o exército industrial de reserva, com a única função de pressionar os trabalhadores existentes a aceitarem cortes em suas condições de vida. Em todo o mundo a burguesia luta conscientemente para retomar certa rentabilidade em seu capital, buscando agora “latino-americanizar” a Europa. O próximo passo será “asiatizar” a América Latina e devastar a China, destruindo povoados e recursos naturais como fez com a África.
Se partes da sociedade estão doentes, como quer David Cameron, certamente são aquelas que, como ele, sob o signo da morte buscam implementar o projeto irracional de não-futuro do capital.
Fonte: Mnn
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