quarta-feira, 29 de junho de 2011

Desenvolvimento Lulista: O jogo de bilhões!



O jogo de bilhões
Ao lado da indústria metalúrgica, a construção civil desempenha um papel central nos grandes processos de acumulação de capital em todo o mundo. No Brasil, o setor da construção deve encerrar o ano com um crescimento de 6% em relação a 2010, sendo responsável por 15% de todo o PIB brasileiro e importante fator para o Brasil ganhar duas posições e ser o 2º mercado mais atrativo dos BRICs (Brasil, Rússia, China e Índia) para o capital privado, perdendo apenas para a economia chinesa.
O "aquecimento do setor", para usar uma expressão cara aos capitalistas da construção civil, tem ligação direta com as grandes obras do PAC do governo federal, tais como a usina de Jirau, em Rondônia, que ganhou as manchetes dos jornais após um levante de 400 operários que trabalhavam na obra. O pacote da construção civil está focado em gigantescas obras de infra-estrutura no Norte e Nordeste.
Nesses canteiros, repetem-se os processos clássicos da assim chamada acumulação originária, descrita por Marx no capítulo 24 de O capital. São grandes obras estatais, mas conduzidas por construtoras privadas, gerando lucros de bilhões de reais. Em Jirau, a obra produziu uma verdadeira cidadela, reunindo 22 mil operários. Tal concentração de força-de-trabalho em uma região sem qualquer infra-estrutura, não-urbanizada, leva a um regime de trabalho de semi-escravidão em que os operários são obrigados a cumprir extensivas jornadas sem qualquer direito elementar como alimentação adequada e água encanada, proporcionando altíssimas taxas de extração de mais-valia.
Além das grandes hidrelétricas e portos, construídos pelo PAC, as obras para a Copa do Mundo de 2014 e para a Olimpíada de 2016 são outras importantes alavancas do crescimento da construção civil brasileira.
O horizonte desses eventos faz despertar todo um desenfreado processo de novas construções e grandes readequações nos principais centros urbanos do país. No Rio de Janeiro, por exemplo, o estádio do Maracanã está em obras desde o ano passado, tendo sua cobertura demolida para dar lugar a uma nova, sem uma explicação razoável sobre o porquê de tal adequação.
Se as reformas de estádios podem levantar suspeitas, as novas construções são uma verdadeira mina de ouro. Não apenas porque exigirão canteiros monstruosos com dezenas de milhares de operários trabalhando em jornadas redobradas para cumprir os prazos dos eventos, mas também porque proporcionam, para as construtoras e consórcios contratados, facilidades nunca antes vistas na história do país.
Entre elas, a mais recente e escandalosa é a MP (medida provisória) proposta pelo governo Dilma que altera a Lei de Licitações, permitindo flexibilizar os contratos de obras e serviços dos dois eventos esportivos. Segundo a MP, já aprovada no Congresso e que deve ser agora votada no Senado, os orgãos de fiscalização, como os Tribunais de Contas, perdem o direito de consultar os orçamentos estimados pelo governo antes da escolha das empresas responsáveis pela execução dos projetos.
Pela MP, as informações seriam repassadas em "caráter sigiloso" e "estritamente" a esses órgãos depois de conhecidos os lances das empresas que participarem de cada licitação, quando o governo achar conveniente. Com a medida, o governo cria uma exceção para as obras dos dois megaeventos esportivos. Tal medida abrirá ainda mais espaço para as fraudes, favorecimentos e esquemas de corrupção envolvendo as licitações das obras do governo federal.
Não seria demais pensar que as mudanças propostas nas "regras do jogo" são, na verdade, uma adequação aos tantos esquemas de corrupção do Planalto, como aquele que parecia estar envolvido o ex-ministro Antonio Palocci. Não estariam entre os serviços de consultoria, prestados por Palocci, conselhos sigilosos sobre as sigilosas grandes obras do governo Dilma?
Uma coisa é certa. Os obscuros meandros das grandes obras estatais - carregados da usurpação forçada do tempo de trabalho dos operários, do tempo de suas vidas, até o mais vil uso privado do Estado - esclarecem o interesse do capital internacional em investir no país, colocando-o, em posição inédita, à frente de Rússia e Índia. Para os trabalhadores brasileiros, chineses, russos, indianos e de todo o mundo, este jogo de bilhões que aparece como um suposto “desenvolvimento econômico nacional” não passa de um processo bárbaro de exploração e roubo. 

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Marchas, revolta e geração


Nos recentes protestos no Brasil, juventude não ficou “em casa”: nem diante do computador, nem em coletivos autofágicos — como o de A Chinesa, de Godard.

Por Bruno Cava, em seu blog Quadrado dos Loucos
Em A chinesa, de 1967, Jean-Luc Godard filma o dia-a-dia de um coletivo maoísta, às vésperas do Maio de 1968. Baseado no romance Os demônios, de Dostoievski, os personagens são jovens estudantes de Paris, em processo de imersão no imaginário radical dos anos 1960. Passam os dias entre densas leituras marxistas, canções, palavras-de-ordem e cartazes políticos, planejando a iminente revolução. Na câmera de Godard, o sisudo visual militante se converte no pop. O preto-no-branco do discurso revolucionário se colore e se diversifica. Godard parece ambíguo, entre um retrato justo das aspirações transformadoras da geração de 68 e uma sátira nada condescendente, a enxergar naqueles jovens meros pequeno-burgueses deslumbrados: somente flertam com a idéia de revolução, assumida mais como aspecto identitário e estetizante que práxis. Possivelmente, a leitura mais completa dessa peça da resistência da nouvelle vague seja contornar qualquer classificação definitiva. Em vez do: essa juventude é isso ou é aquilo, abrigar a generosidade do real com a conjunção e: isso aquilo.
Quem participou das marchas das liberdades, em São Paulo, Rio de Janeiro e outras metrópoles brasileiras, talvez compreenda melhor ao que me refiro, quando falo em percepção essencialmente ambígua. Porque foram manifestações urbanas eminentemente elitizadas, brancas, tocadas pelos filhos da classe-média. Não admira o pequeno porte, uns poucos milhares de manifestantes, nem a relativa aversão explicitada por grupos da periferia. No Rio, a marcha reuniu várias pautas, das LGBTT e feministas à resistência cultural anti-Ana de Hollanda e contra a propriedade autoral. No entanto, predominou a pauta da legalização da maconha. Uma reivindicação aliás fundamental, na medida em que essa proibição constitui uma das causas principais da violência urbana, de um controle social racista e da corrupção eleitoral. Por deficiências da organização, o maior interessado na legalização — o morador pobre e negro da periferia — não se mobilizou. Já a marcha dos 50 mil pelos bombeiros, há uma semana, se por um lado contou com desconcertante contingente das periferias cariocas, por outro se concentrou quase inteiramente na agenda corporativa salarial e por melhores condições, bem como pela libertação dos presos políticos. Percebe-se, de cara, a distância das recentes marchas em relação ao movimento generalizado do 15-M da Espanha e, com ainda maior separação, das revoluções árabes.
Daí tantas críticas às recentes passeatas e àquelas agendadas para o futuro próximo. Não passariam de espasmos da elite, despolitizados e impotentes. Seriam tão pateticamente comoventes quanto formar um cordão humano para abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas em nome da “paz”, ou quanto o ativismo-de-dondoca do Cansei,em 2007, que chegou ao cúmulo de vaiar aviões decolando. Essas críticas têm a sua razão de ser. De fato, muitos crêem que fazer a sua parte se limite a indignar-se ante a corrupção, reclamar dos políticos, reciclar o lixo, velar pelo tom politicamente correto, consumir orgânicos, ir ao emprego de bicicleta e minutar o seu dia numa mídia social qualquer. Tenho a impressão que essa atitude “consciente” seja até mais comum do que aquela de quem não está nem aí, que fica na sua vidinha privada, sem opinião, e no fundo só quer se dar bem.
Na dita geração Z, hoje com até 20 anos, a ausência de revolta parece ter se agravado. Quantas vezes não fui pessimista, e reclamei que essa geração não se rebela à vera. Não se revolta sequer contra os pais; adolescentes com dentes alinhados e narizes corrigidos, bem alimentados, bem cuidados, bem tratados por famílias perfeitinhas, parecem grandes laranjas brilhosas, mas sem carne e sem veia aberta.
Ampliando o espectro, a geração nascida da metade dos anos 1970 em diante não experimentamos nenhuma grande decepção histórica. Não vivenciamos 1968 ou 1989. Essas pessoas com até 40 anos fomos ensinados a desconfiar de grandes narrativas (noutras palavras, aderir acriticamente a uma única narrativa, a do capitalismo hegemônico, que assim se naturaliza e se reproduz). A descrença é sistematicamente endossada pela repetitiva culpabilização das ideologias e do pensamento radical, — condenados inapelavelmente pelos regimes de horror do século 20.
Essas críticas também têm a sua pertinência. Com efeito, o formato antigo de agremiações centralizadas, coesas numa verdade e altamente disciplinadas não cabe mais, pois não há mais Palácio de Inverno a se tomar. Num capitalismo globalizado, difuso e sem centro, a exploração se imiscui nas frinchas do cotidiano. Qualquer resistência eficaz deve ir além de dogmáticas e coletivos duros, para mexer com aprodução de subjetividade. Nesse sentido, a Praça Tahrir, o 15M e, em menor grau, as marchas brasileiras de 2011, exprimem um caminho bastante oportuno. Mais que isso, nesse contexto, a constituição de redes produtivas autônomas (como osPontos de Cultura, os coletivos de rap e hip-hop, a blogosfera de esquerda, o Fora do Eixo etc), o código colaborativo do software livre e da wikipídia, e mesmo o singelo ato de baixar e compartilhar conteúdos livremente pela internet, — tudo isso se torna imediatamente político e resistente.
Mas não deslumbremos. Em tempos de super-fluxos e redes de redes, não percamos a lucidez. Nada substitui a ocupação de ruas e praças. Nada substitui “uma rebeliãozinha de vez em quando“, o que, para Thomas Jefferson, é constitutivo da democracia. As marchas têm o papel de resgatar o movimento de rua, que a internet jamais substituirá. As novas formas de organização qualificam a ocupação intensiva do espaço público, jamais a dispensando. A força das redes não fica apenas no online, mas na articulação nas texturas urbanas, na organização e funcionamento da metrópole. Na realidade, o capitalismo condiciona os espaços, ritmos e escoamentos da cidade numa matriz totalmente contingente, que colapsa rápido nessas horas de rebelião. Como por sinal se viu em Túnis, Tahrir, Pérola, Puerta del Sol e Praça Catalunha, — que nada significariam se as pessoas não tivessem saído de suas casas para as mil crônicas da rua. Tomar ruas e praças continua essencial em qualquer democracia e deveria ser o hábito por excelência do cidadão.
Por tudo isso, conquanto as críticas mencionadas sejam pertinentes e mesmo necessárias, é preciso reconhecer uma abertura potente nas marchas de 2011. Pessimismo na razão, otimismo na ação. Tem algo aí que pode crescer tanto em quantidade, quanto qualitativamente (na intensidade do desejo). Faltou a revolta da periferia, sim, mas não faltaram conexões para que isso ocorra e em breve. O modo de desdobrar o movimento tem uma dinâmica expansiva. Afinal, as pessoas não ficaram em casa: nem diante do computador, nem em coletivos autofágicos como em A chinesa. Foram pra rua, generosos e sem preconceitos, pra conhecer o diferente, pra aprender coisas novas, pra se enredar com o outro. O desafio, agora, penso eu, está em recompor a classe em movimento. Consiste em desatar o nó, que impede que todas as demandas se reúnam na sua diferença. Isto é, sem unificação numa única verdade, por uma única luta, por um único livro vermelho. É a mesma luta, diferentes.
“Para muita gente a verdadeira perda do sentido político consiste em se juntar a uma formação partidária, submeter-se a sua regra, sua lei. Para muita gente também quando se fala de apolitismo, fala-se antes de tudo de uma perda ou de uma ausência ideológica. Eu não sei o que vocês pensam quanto a isso. Para mim a perda política é antes de tudo a perda de si, a perda de sua cólera assim como a de sua doçura, a perda de seu ódio, de sua faculdade de odiar assim como a de sua faculdade de amar, a perda de sua imprudência assim como a de sua moderação, a perda de um excesso assim como a perda de uma medida, a perda da loucura, de sua ingenuidade, a perda de sua coragem como a de sua covardia, a de seu terror diante de tudo assim como a de sua confiança, a perda de suas lágrimas assim como a de seu prazer. É isso o que eu penso.” (Marguerite Duras, “La perte politique”, Cahiers du Cinéma nº 312-313, junho de 1980, apud Revista Contracampo).

sábado, 25 de junho de 2011

Aniversário

    Fernando Pessoa
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu era feliz e ninguém estava morto.
    Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
    E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
    De ser inteligente para entre a família,
    E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
    Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
    Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
    Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
    O que fui de coração e parentesco.
    O que fui de serões de meia-província,
    O que fui de amarem-me e eu ser menino,
    O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
    A que distância!...
    (Nem o acho...)
    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
    O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
    Pondo grelado nas paredes...
    O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
    O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
    É terem morrido todos,
    É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
    Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
    Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
    Por uma viagem metafísica e carnal,
    Com uma dualidade de eu para mim...
    Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
    Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
    A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
    com mais copos,
    O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
    As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
    Pára, meu coração!
    Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
    Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
    Hoje já não faço anos.
    Duro.
    Somam-se-me dias.
    Serei velho quando o for.
    Mais nada.
    Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
    Álvaro de Campos, 15-10-1929

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O fantástico show da vida

Baseado na obra: Leviatã (Thomas Hobbes) - da analogia entre autor (povo) e ator (representante: Soberano)


Por: Maicon Fortunato - mestrando em filosofia política.

Observam o cenário montado, é chegado a hora!
os figurantes já se posicionaram, perfeita simetria.
Uma trilha ao fundo une, espectador e espetáculo;

Protagonistas desfilam com seus figurinos atraentes,
imponentes, esteticamente convincente!
Acenam para o público, ensejam um discurso, mais ainda é cedo...

Neste momento as cortinas se abrem: 
bem-vindo ao "fantástico show da vida".
Mas afinal, qual é a trama da peça?
Qual é o gênero? seria uma comédia? se for, é preciso ter muita cautela,
afinal, há um limite tênue entre o riso e o ridículo.

Mas se for uma tragédia? pois bem, que todas as desventuras, todos os infortúnios estejam justapostos para que assim possam atingir o público,
e que em meio a tanta desgraças, os mesmos possam se sentirem purificados.

Agora, se não provocar risos e nem catarse, se a tônica do espetáculo não 
provocar reações, então, é preciso solapar o edifício montado.
Destituir os protagonistas e fazer desta ficção uma verdadeira epopéia.

Assim feito, o público deve se mesclar a trama, de tal forma que não seja mais perceptível a diferença entre realidade e ficção. 
E nesse instante, o povo assume o papel de ator e autor, desfazendo a velha ordem.
Tornando-se capazes de personificar suas próprias vidas e por fim, de decidir o exato momento de encerrar o espetáculo.

Por: Maicon Fortunato -  23/06/11

terça-feira, 21 de junho de 2011

O cárcere de Infância


Lembranças da obra de Graciliano: um documento de terrores e inibições no contexto do patriarcado rural nordestino, flagrado no pós-Abolição
Por Priscila Figueiredo*, colaboradora de Outras Palavras
No artigo anterior ["A testa enrugada da lei e o olho da rua"], sobre Robert Walser, observei que seu romance Jacob von Gunten seria, como nenhum outro de que me lembrava, “um catálogo de apreensões e profundas inseguranças”. Enquanto escrevia isso ocorreu-me que, entre nós, Infância, de Graciliano Ramos, não ficava, a esse respeito, mal situado. Não o mencionei logo porque isso implicava cruzar outra sintonia, muito distinta, o que daria trabalho suplementar e não era o caso. Então o faço agora porque nestes últimos dias a ideia de comparação cresceu, obrigou-me a retomar as memórias nada elegíacas do escritor alagoano e quer ser tranquilizada de alguma forma. Na verdade, o único ponto que julgo mais pertinente reter é o de que Infância constitui a seu modo um documento de terrores e inibições, no contexto do patriarcado rural nordestino, aqui flagrado no período pós-Abolição.
O modo metonímico como ele se refere à mãe e ao pai no começo, mãos finas, mãos grossas, tem a ver com o tipo de memória, voluntária, mais que isso, voluntariosa, que vai puxando com dificuldade, como de um mar genesíaco, primordial, anterior à autoconsciência do eu-narrador, seres, coisas, paisagens, primeiro formas inacabadas, indecisas, entre as quais não se adivinham ainda as relações. Os fatos, as ações encadeadas mal se esboçam nesse momento, são retalhos. O elemento anedótico, o caso, o propriamente narrável adquire mais firmeza só depois de alguns capítulos — eu diria que especialmente a partir do conto “O cinturão”, sobre uma surra só não tão traumática porque está narrada. Enfim narrada (deve ter pensado a vítima, já adulta), diretamente, com a pessoa real apontada sem desvios e mediações ficcionais, como na Carta ao pai de Kafka.
“As letras do alfabeto podem adquirir o aspecto de entidades implacáveis, ou uma concreticidade 
que as aparenta ao pedaço de madeira com que o pai o ameaça a cada hesitação na leitura, 
como se cada uma delas fosse o punho fechado da autoridade insensível a apelos”

Provavelmente e conforme a data de nascimento do escritor, estaríamos nesse ponto em 1894, 1895 (“Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos”). O livro cobre uma década mais ou menos, até 1905. Desde as primeiras páginas, porém, a violência e as caretas primitivas do medo formam um alto relevo sobre o fundo amorfo e escuro da memória mais remota: “Bem e mal ainda não existiam, faltava razão para que nos afligissem com pancadas e gritos”. Isto é, as pancadas e gritos estão desde sempre, antes de qualquer senso moral, que, presume-se, não é incutido tão facilmente por eles porque lhes faltam bons motivos. Como são muito freqüentes, o arroz diário daquela vida, as justificativas de peso que lhe dão sustentação se revezam com as triviais, e a criança, não podendo distinguir uma da outra, também não discrimina de início as ações corretas das más, ambas dissolvidas pelo cantochão de ofensas e bordoadas. O passo seguinte, à medida que se desenvolve, é interiorizar noções de dever, mas um tanto desastradamente, isto é, automutilando-se, inibindo a própria espontaneidade de maneira bem mais impiedosa do que a “normalmente” prevista na formação da personalidade (as aspas pedem relativização e consideração do padrão de repressão geral de determinado contexto histórico-cultural). O resultado, como ele mesmo dá a conhecer, é timidez excessiva, medo permanente de tudo e de todos (germe de angústia, livro e sintoma), um embotamento dos sentidos e de certos aspectos da capacidade cognitiva que beira a deficiência. A cegueira efetiva num determinado período e a dificuldade que teve com o aprendizado da escrita, o qual toma dimensão verdadeiramente vexaminosa, parecem ser antes conseqüências do referido processo que manifestações do gene ou do azar. Não por acaso as letras do alfabeto podem adquirir o aspecto de entidades implacáveis (“Jogaram-me simultaneamente maldades grandes e pequenas, impressas ou manuscritas”), ou mesmo uma concreticidade que as aparenta ao pedaço de madeira com que o pai o ameaça a cada hesitação na leitura, como se cada uma delas fosse o punho fechado da autoridade insensível a apelos.
Como quase tudo que faz, movimento de vida e curiosidade, é invariavelmente interditado, o menino passa à suposição de que todas as suas ações devem ser erradas e, mais, que ele mesmo é um grande erro. Num episódio o vemos interessado no significado da palavrainferno (a mesma palavra que encanta o filho de Fabiano em Vidas secas, obra anterior aInfância), sobre a qual entrevista a mãe. No entanto as explicações dadas pouco o convencem e tranqüilizam, antes pelo contrário lhe dão ânimo argumentativo, inquiridor, o que a mãe –não propriamente maternal, cuidadora, mais próxima, diz ele, de uma criança irritadiça, com a qual era preciso ter cautela – interpreta como insolência e abuso. Ele até preferiria acreditar no que lhe era contado, mas havia incongruências no relato e era preciso corrigi-las para que pudesse receber um esclarecimento mais satisfatório, mais amarrado logicamente: “Ainda não me havia capacitado de que se descrevem perfeitamente coisas nunca vistas”. O que se mostrava nele sinal evidente de inteligência e autonomia é abruptamente classificado como o seu contrário (“minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido”). No entanto, conseguindo fazer avançar a curiosidade além de todo constrangimento, ao menos nesse caso, ele ainda ousa cometer um último ato de rebeldia: “Não há nada disso”, desfazendo das chamas e suplícios eternos. O ponto final da discussão é conhecido dele e não tarda: várias chineladas.
Estaria tudo muito bem se então ele, ao fim e ao cabo, ao menos aprendesse que não se devem interpelar os dogmas religiosos, os quais estão aí para ser aceitos e temidos. Isso é o que os pais têm para lhe passar, dentro da cultura de superstição a que estão presos. Se ele aprendesse que a curiosidade matou o gato e que por vezes é bom limitá-la, haveria alguma coerência no ensinamento. Ocorre que às vezes o peso e a medida são outros para julgar a insolência daquele que ousa ultrapassar certos limites. Como se nota mais adiante, “acertávamos ou falhávamos como se jogássemos o cara-ou-cunho”. Ser pego em erro ou acerto depende do humor de quem o avalia, tão inconstante como um jogo de azar, e não de parâmetros claros. Poucas páginas adiante topamos com duas narrativas que se revelarão fundamentais no conjunto, “O moleque José” e “Um incêndio”. No primeiro, a visão do suplício de um negro, companheiro do menino Graciliano, que o admirava e mesmo o invejava pela superioridade, manifesta no conhecimento de bichos, lugares, plantas, na sua maior liberdade de ação e linguagem e na capacidade de agüentar firme, sem chorar, as mesmas pancadas e cóleras que seu senhor infligia ao filho. Como este e os cachorros, os moleques José e Maria (a irmã) são os “viventes miúdos”, constantemente ameaçados e aterrorizados pelas mudanças de humor de seu padrinho, ante o qual cada um deles desenvolve uma forma específica de comportamento: a aparente resignação, com fuga no momento propício (caso de Maria), o trato mais manhoso, “suave e persuasivo” (o de José) e a renúncia à auto-afirmação, a hipertrofia do medo com o fim de garantir uma mínima autoconservação física. Seja qual for a estratégia adotada, menos ou mais consciente, ela sempre produz alguma deformação, menos ou mais devastadora, em quem a pratica. Um exemplo disso aparece no capítulo citado e é a incapacidade de manter a aliança com um igual em humilhação, mas não em situação de classe, quando vem a se manifestar o pior de uma autoridade exercida sem limite, embora esta já não esteja no topo da ordem social –Sebastião Ramos não é mais um grande proprietário, e sua instabilidade econômica agrava a instabilidade de déspota que não deixa de ser, o qual ainda se serve das regalias deixadas pelo sistema escravista.
“O peso e a medida moral agora mudaram: não há o que lamentar, 
pois você viu o resto de quem foi preto, pobre, insignificante.Logo, você praticamente não viu nada. Por que se culpa? A criança agora está confusa”

A impossibilidade desse tipo de aliança tinha sido exemplarmente tratada por Machado de Assis num conto como “O caso da vara”: na hora H, ou quando o pau come, ou um interesse mais específico está para ser alcançado, o jovem ainda impedido de ter opinião própria, mas socialmente mais bem colocado, não sai em auxílio, para sua própria decepção, da mucama que vê ser maltratada pela madrinha. Por sua vez e em nível mais grave, o memorialista Graciliano constata com horror como fora tomado de uma poderosa excitação, “uma viva sede de justiça. Nenhuma simpatia ao companheiro desgraçado, que se agoniava no pelourinho, aguardando a tortura (…). Conservei-me perto da lei”, torcendo pela punição de José, seu igual no entanto nos castigos, nos medos, na insignificância. Do gozo voyerístico ele passa à ação sádica e, tal como o estranho Fortunato, personagem de outro conto de Machado, “A causa secreta”, segura um rato por um barbante e lhe corta lentamente uma das patas, aproximando-o da chama, ele, aproveitando que o pai suspendia o rapazinho negro pelas orelhas e como que oferecendo seus préstimos, retira uma pequena acha do fogão a lenha e a encosta a um dos pés que se agitavam sobre sua cabeça.
Na narrativa seguinte, verdadeiramente tenebrosa, “Um incêndio”, o sentido da visão, e da visão indecorosa, continua a se destacar, mas aqui ela conduz o personagem ao reino de Medusa. O impossível moleque José o convida a ir ver o estrago causado pelo fogo num grupo de ranchos habitados por ex-escravos e descendentes. Em princípio, Graciliano tem o interesse despertado por duas coisas: por labaredas capazes de devastação maior que as da fogueira de São João e por conhecer finalmente as misteriosas cabanas, zona quase proscrita e mágica, onde moravam “diabinhos maliciosos”. Uma vez lá, horrorizado com os relatos e os tormentos dos sobreviventes, é pressionado por desejos contraditórios, abandonar de vez o lugar ou ir mais a fundo na pesquisa, que agora lhe parece mórbida. A última inclinação vence e o arrasta a contemplar o cadáver de uma moça esturricada por insistir em voltar à casa e apanhar uma litografia de Nossa Senhora. O que vê é o inominável: como o que uma vez fora humano pôde se reduzir àquilo, menos que animal, um barrote sem sexo, cabelo, pele, braços, pernas? O espanto talvez seja pelo que revela do próprio humano, da extrema fragilidade dessa organização chamada “humana”. Até esta altura, tão habituado com podas, inibições de todo tipo, suplícios físicos, não imaginara uma mutilação dessa ordem. Sentindo-se profanador, profundamente culpado por ter infringido um tabu que compreende agora como mais que necessário, favorável à própria vida, corre aos pais, aos quais não para de repetir o acontecimento, na espera ansiosa por um interdito, por uma punição dolorosa, que o ajudasse a silenciar em sua mente, pelo desvio de tônus, o desfile de imagens compulsivamente desatadas, além do princípio do prazer, como diria Freud. O castigo não vem, nem mesmo uma repreensão verbal, e é isso o mais assombroso para ele e para nós. Os pais retiram sem esforço a relevância do ocorrido, pois este se dera com uma preta anônima, que ao contrário do que parecia tivera sorte: por sua teimosia de última hora, ia agora saltar a etapa do purgatório e ir direto para o céu. A curiosidade do menino, que extrapolara o tolerável, com possíveis prejuízos para sua integridade psíquica, não é castrada como foram outros interesses — tão mais saudáveis para ele –, como aquele de saber se quem descreve o inferno cristão descreve o que viu efetivamente. O peso e a medida moral agora mudaram: não há o que lamentar, pois você viu o resto de quem foi preto, pobre, insignificante. Logo, você praticamente não viu nada. Por que se culpa? A criança agora está confusa.
Quando escreveu Infância e o publicou, já no fim da ditadura de Vargas, o autor já tinha passado pelo inferno da prisão em que foi metido sem processo e acusação formal, na onda de reações histéricas à Intentona Comunista. É bem possível que essa experiência tenha sobredeterminado a visão de seus primeiros anos, não propriamente a deturpando, mas colaborando para selecionar as situações e ajustar melhor, tornando-o mais aguilhoado, o vocabulário do terror, a meu ver a qualidade mais importante desse livro.
Priscila Figueiredo é poeta e ensaísta. Tem graduação em alemão e português na USP, onde faz o pós-doutorado na área de Teoria Literária. É autora de Em busca do inespecífico (ed. Nankin, 2001) e Mateus (editora Bem-te-vi).
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